11.11.17

A benção da encruzilhada


Ontem, 9 de novembro de 2017, Fernando de Mello Franco realizou uma palestra sobre projeto e política pública, para a disciplina Espaços Públicos, Situações e Projetos, ministrada pelos professores Luiz Guilherme Rivera de Castro e Igor Guatelli. Convidado para ser secretário na gestão Haddad (2013-2016), confessou que não teve que disputar o cargo, pois a então Secretaria de Desenvolvimento Urbano era de pouco interesse quando da fatia do bolo da máquina estatal: “public policy não interessa para politics; considero isso uma tragédia”. Doravante, o que pude observar nas três horas de conversa foi um profissional dez anos mais amadurecido desde aquele trabalho seminal apresentado na III Bienal de Roterdã em 2007, Vazios d’água, e doze anos a contar da publicação da sua tese de doutorado A construção do caminho: a estruturação da metrópole através da conformação técnica da Bacia de São Paulo, em 2005.

Integrante do grupo de pesquisa Metrópoles Fluviais e discípulo de Alexandre Delijaicov, Fernando discorreu sobre a condição complexa e multifacetada de São Paulo, estruturando o seu pensamento a partir de um quadro denso e amplo de intelectuais. E desabafa quando da atuação como secretário: “quando algum adversário político queria me desqualificar, dizia que eu era muito acadêmico, excessivamente; é o cúmulo do disparate tentar desqualificar uma pessoa pela sua inteligência”.

E por que um sistema de planejamento? Encruzilhada da Ladeira Porto Geral com a Rua 25 de Março, aparentemente um retrato de balbúrdia, esse centro de alto dinamismo econômico recebe diariamente cerca de quinhentas mil pessoas, aproximadamente a mesma quantidade de turistas nas Olimpíadas do Rio de Janeiro em 2016. Cita Alfredo da Silva Telles: “desordem é um tipo de ordem que não nos convêm”. E mais, há várias ordens concorrendo concomitantemente, impondo procedimentos necessários para dar forma à organização de conflitos. Daí que se percebe: Política com P maiúsculo não é para qualquer um, ainda que cada politic jogue o jogo como melhor lhe apetecer, mesmo que seja com temperamento sórdido. O que não ocorre com Fernando, cuja perspicácia e precisão nos argumentos já pude observar em diferentes ocasiões e contextos.

E como interpretar o território? Oras, os rios e marginais de São Paulo não são exclusivos de seus munícipes, e desde a estruturação do sítio urbano pela implantação da ferrovia, na segunda metade do século XIX, observamos a ruptura com as águas como uma consequência da cidade industrial. Isso não é caso exclusivo de São Paulo e pode ser observado em várias cidades, entre estas Barcelona e Nova York. E não foram nem os rios nem as rodovias, mas antes a ferrovia o próprio elemento fundacional da metrópole contemporânea, e que transformou decisivamente as áreas de várzea dos principais rios da bacia do Alto Tietê.

E como operar o projeto? Políticas setoriais não bastam, mas integrá-las por si só também não é garantia. Para isso, duas premissas devem ser existir: possibilidade de singularização de setores específicos do território, desde que existam os instrumentos regulatórios – um cardápio de ingredientes – e mecanismos de financiamento – a possibilidade de bancá-los. Uma vez que essa costura seja feita – quem vai dar a receita é o projeto, esse posicionamento que é exigido quando o programa de determinada questão é colocado. E de foi de fato o manual de operações para tal máquina de costura foi inscrito e gravado no município com um trabalho vigoroso da SMDU, e de forma inédita, que incluiu nesse interim uma ampla participação de vários setores da sociedade, entre estes as universidades. Quem acompanhou sabe o peso que tem todo este trabalho, ainda que alguns tentem, nos desdobramentos da atualidade – essa superfície de mar revolto – destruí-lo. Todavia, ainda que tenha havido mudança radical no curso recente da administração da coisa pública, existe uma crise geracional pode ser benéfica enquanto catalisadora de mudanças. Há de se observar.

E como efetivar a política pública? A única forma de empoderar verdadeiramente o cidadão, no sentido de construção de uma consciência política, é provendo acesso à informação e transparência na gestão pública. Ainda que possamos problematizar a veracidade ou legitimidade das informações, ou como diria Adorno, questionar o pensamento pré-estabelecido que muitas vezes domina o próprio ato de pensar, a construção da consciência política passa necessariamente pelo debate público e pela pactuação de um programa de compromissos. Afinal, enquanto uma sociedade achar normal que o motorista de um veículo não pare na faixa de pedestre para a passagem de uma pessoa, o que se vai fazer? Felizmente, não precisamos ficar reféns dessa ou daquela condicionante, mas, uma vez identificada, podemos nos deslocar, para produzir intensidades e para que outras realidades possam surgir.

Como exemplo de projeto de política pública efetivado e reconhecido, foi apresentado o trabalho Conecting the dots que integrará o programa das duas próximas bienais de Roterdã, em 2018 e 2020. O projeto parte de três figuras conceituais – a brincadeira de ligar os pontos 1 2 3 4 5 etc e formar uma imagem; a ligação complicada de pontos que algum investigador precisa resolver para desvendar um crime; e a figuração de constelações na astrologia antiga para estabelecer significações coletivas – e as utiliza para analisar a problemática das bordas metropolitanas. Sobrepõem-se em tais áreas atividades rurais e agrícolas, áreas de preservação e recuperação ambiental, bem como processos de urbanização em que pesem as vulnerabilidades sociais. Considerando o papel da alimentação na história da humanidade, e que problemas alimentares afetam o desenvolvimento cognitivo e acentuam a segregação sócio espacial, foi estabelecido o objetivo de promover uma dinamização ecológica através da economia. Tendo a prefeitura como grande mercado produtor de refeições – cerca de 2,5 milhões de pratos/dia – e também o crescimento na produção de alimentos orgânicos de 26% ao ano, Conecting the dots se mostrou um mecanismo de construção da própria política pública em si, fornecendo subsídios para o incremento de uma agricultura urbana e familiar e que se encontra fora da cadeia do agronegócio, que produz a granel. Em suma, o que a aplicação desse projeto propicia é construção de outras máquinas a partir o reconhecimento das engrenagens, bem como a articulação com outras e novas engrenagens.



Finalmente, na última questão da noite, mas não menos inquietante: por que é o PCC que está controlando o processo atual de espraiamento urbano em São Paulo? Porque, assim como as milícias do Rio de Janeiro, é uma rede que funciona fora da máquina estatal, adquirindo terrenos desvalorizados, induzindo mesmo processos de urbanização autônoma. E dentro da máquina estatal, com o aparelhamento de igrejas evangélicas cuja força se faz cada vez mais sentir, seja nos grandes centros urbanos, seja no processo de evangelização das tribos de fronteira. Assim, a grande questão que está posta em debate no Brasil não é sobre direita – esquerda ou coxinhas e petralhas, mas sobre a própria existência (e sobrevivência) do Estado enquanto ente soberano das vontades de uma povo e espelho de uma nação.