21.2.17

Carruagem


Nem faz tanto tempo que a gente se partiu
A casca do ovo quebrado
Os cacos de vidro de leite derramado
O trem que já partiu da estação
Não fossem cisões e rupturas
E poderia ser uma receita,
de bolo, de viajar, de ser feliz
Agora já somos outras coisas
Fragmentos, solidão, cicatrizes
Também somos felizes
Ainda que cínicos e hipócritas e inúteis
As complicações do cotidiano
O sofrimento lento e sortido do viver
Que tempera os momentos bons
A madrugada fresca que espraia pela cidade
A lembrança do campo, da água, do mar
Uma idéia inventada de campo
Nostálgica, que ouvimos da boca dos mais velhos
Madrugadas de um outro tempo
Orvalho da manhã, ainda verão
Daqui a pouco outono

Não faz tanto tempo assim desde que você partiu
Mas ficou um vazio, algo de vida sem graça
Ainda que haja tanta graça pela vida
Basta ver, procurar, inventar
A criatividade é virtude de si próprio
Se bem que mais divertida se compartilhada
Com o outro, um poema, uma foto, um sorriso
Bom dia, uma troca de olhares
Esse poço profundo do mundo
A roda do mundo não para
Fortuna, pobreza, imensidão
Ocaso e guerra, guerras fúteis
Carnificina, ignomínia, obliteração
Pra que tanta guerra, se o vento na face tão bom?
A roda da fortuna gira, estamos atrelados a ela
À tecitura do fio da vida, na máquina de tear
São tantos nós quanto pérolas
Embrutecidas conchas de um mar de intempéries
Quanto lixo jogado no mar
Mas o mundo dá voltas
A Terra gira com os outros planetas
Também os astros, em uma dança celestial
Lá fora crianças brincam com jogos de bola
E roda e ciranda, a rua da fortuna
ainda vive uma árvore

Não faz tanto tempo assim que eu parti
Mas dessa parte que se soltou
Tal qual luz do fim do universo, que me habita agora
Quanto restou?
A luz da memória, uma ficção
O coração partido, a cola do mundo
Tantos amores vêm e vão

Mas o que parte também permanece
Ainda é verão