Ontem, 9 de novembro de 2017, Fernando de Mello Franco realizou uma palestra sobre projeto e política pública, para a disciplina Espaços Públicos, Situações e Projetos, ministrada pelos professores Luiz Guilherme Rivera de Castro e Igor Guatelli. Convidado para ser secretário na gestão Haddad (2013-2016), confessou que não teve que disputar o cargo, pois a então Secretaria de Desenvolvimento Urbano era de pouco interesse quando da fatia do bolo da máquina estatal: “public policy não interessa para politics; considero isso uma tragédia”. Doravante, o que pude observar nas três horas de conversa foi um profissional dez anos mais amadurecido desde aquele trabalho seminal apresentado na III Bienal de Roterdã em 2007, Vazios d’água, e doze anos a contar da publicação da sua tese de doutorado A construção do caminho: a estruturação da metrópole através da conformação técnica da Bacia de São Paulo, em 2005.
Integrante do grupo de pesquisa Metrópoles Fluviais e
discípulo de Alexandre Delijaicov, Fernando discorreu sobre a condição complexa
e multifacetada de São Paulo, estruturando o seu pensamento a partir de um
quadro denso e amplo de intelectuais. E desabafa quando da atuação como
secretário: “quando algum adversário político queria me desqualificar, dizia
que eu era muito acadêmico, excessivamente; é o cúmulo do disparate tentar
desqualificar uma pessoa pela sua inteligência”.
E por que um sistema de planejamento? Encruzilhada da
Ladeira Porto Geral com a Rua 25 de Março, aparentemente um retrato de
balbúrdia, esse centro de alto dinamismo econômico recebe diariamente cerca de
quinhentas mil pessoas, aproximadamente a mesma quantidade de turistas nas
Olimpíadas do Rio de Janeiro em 2016. Cita Alfredo da Silva Telles: “desordem é
um tipo de ordem que não nos convêm”. E mais, há várias ordens concorrendo
concomitantemente, impondo procedimentos necessários para dar forma à
organização de conflitos. Daí que se percebe: Política com P maiúsculo não é
para qualquer um, ainda que cada politic jogue o jogo como melhor lhe apetecer,
mesmo que seja com temperamento sórdido. O que não ocorre com Fernando, cuja
perspicácia e precisão nos argumentos já pude observar em diferentes ocasiões e
contextos.
E como interpretar o território? Oras, os rios e marginais
de São Paulo não são exclusivos de seus munícipes, e desde a estruturação do
sítio urbano pela implantação da ferrovia, na segunda metade do século XIX,
observamos a ruptura com as águas como uma consequência da cidade industrial.
Isso não é caso exclusivo de São Paulo e pode ser observado em várias cidades,
entre estas Barcelona e Nova York. E não foram nem os rios nem as rodovias, mas
antes a ferrovia o próprio elemento fundacional da metrópole contemporânea, e
que transformou decisivamente as áreas de várzea dos principais rios da bacia
do Alto Tietê.
E como operar o projeto? Políticas setoriais não bastam, mas
integrá-las por si só também não é garantia. Para isso, duas premissas devem
ser existir: possibilidade de singularização de setores específicos do
território, desde que existam os instrumentos regulatórios – um cardápio de
ingredientes – e mecanismos de financiamento – a possibilidade de bancá-los.
Uma vez que essa costura seja feita – quem vai dar a receita é o projeto, esse
posicionamento que é exigido quando o programa de determinada questão é
colocado. E de foi de fato o manual de operações para tal máquina de costura
foi inscrito e gravado no município com um trabalho vigoroso da SMDU, e de
forma inédita, que incluiu nesse interim uma ampla participação de vários setores
da sociedade, entre estes as universidades. Quem acompanhou sabe o peso que tem
todo este trabalho, ainda que alguns tentem, nos desdobramentos da atualidade –
essa superfície de mar revolto – destruí-lo. Todavia, ainda que tenha havido
mudança radical no curso recente da administração da coisa pública, existe uma
crise geracional pode ser benéfica enquanto catalisadora de mudanças. Há de se
observar.
E como efetivar a política pública? A única forma de
empoderar verdadeiramente o cidadão, no sentido de construção de uma
consciência política, é provendo acesso à informação e transparência na gestão
pública. Ainda que possamos problematizar a veracidade ou legitimidade das
informações, ou como diria Adorno, questionar o pensamento pré-estabelecido que
muitas vezes domina o próprio ato de pensar, a construção da consciência
política passa necessariamente pelo debate público e pela pactuação de um
programa de compromissos. Afinal, enquanto uma sociedade achar normal que o
motorista de um veículo não pare na faixa de pedestre para a passagem de uma
pessoa, o que se vai fazer? Felizmente, não precisamos ficar reféns dessa ou
daquela condicionante, mas, uma vez identificada, podemos nos deslocar, para
produzir intensidades e para que outras realidades possam surgir.
Como exemplo de projeto de política pública efetivado e
reconhecido, foi apresentado o trabalho Conecting the dots que integrará o
programa das duas próximas bienais de Roterdã, em 2018 e 2020. O projeto parte
de três figuras conceituais – a brincadeira de ligar os pontos 1 2 3 4 5 etc e
formar uma imagem; a ligação complicada de pontos que algum investigador
precisa resolver para desvendar um crime; e a figuração de constelações na
astrologia antiga para estabelecer significações coletivas – e as utiliza para
analisar a problemática das bordas metropolitanas. Sobrepõem-se em tais áreas
atividades rurais e agrícolas, áreas de preservação e recuperação ambiental,
bem como processos de urbanização em que pesem as vulnerabilidades sociais.
Considerando o papel da alimentação na história da humanidade, e que problemas
alimentares afetam o desenvolvimento cognitivo e acentuam a segregação sócio
espacial, foi estabelecido o objetivo de promover uma dinamização ecológica
através da economia. Tendo a prefeitura como grande mercado produtor de
refeições – cerca de 2,5 milhões de pratos/dia – e também o crescimento na
produção de alimentos orgânicos de 26% ao ano, Conecting the dots se mostrou um
mecanismo de construção da própria política pública em si, fornecendo subsídios
para o incremento de uma agricultura urbana e familiar e que se encontra fora
da cadeia do agronegócio, que produz a granel. Em suma, o que a aplicação desse
projeto propicia é construção de outras máquinas a partir o reconhecimento das
engrenagens, bem como a articulação com outras e novas engrenagens.
Finalmente, na última questão da noite, mas não menos
inquietante: por que é o PCC que está controlando o processo atual de
espraiamento urbano em São Paulo? Porque, assim como as milícias do Rio de
Janeiro, é uma rede que funciona fora da máquina estatal, adquirindo terrenos
desvalorizados, induzindo mesmo processos de urbanização autônoma. E dentro da
máquina estatal, com o aparelhamento de igrejas evangélicas cuja força se faz
cada vez mais sentir, seja nos grandes centros urbanos, seja no processo de
evangelização das tribos de fronteira. Assim, a grande questão que está posta
em debate no Brasil não é sobre direita – esquerda ou coxinhas e petralhas, mas
sobre a própria existência (e sobrevivência) do Estado enquanto ente soberano
das vontades de uma povo e espelho de uma nação.