Afastei-me bruscamente. Não que não quisesse ficar, pelo contrário:
não queria ir embora.
Não mesmo, daquele lugar tão brilhante e colorido, como um
fundo abissal de mar, onde a luz do Sol não chega, noite eterna, mas de onde
pululam vidas fosforescentes e voluptuosas, magnânimas e terríveis. Noite
fantástica e fabulosa, Lua de sonho constante, que arrasta mares; onde
independe terra e continente, os olhos, pequena parte da vastidão da Terra, do
fundo se insinua o grande Ovo.
O mundo está de cabeça para baixo, e a ponta da pirâmide do
pensamento aponta para lá, para o fundo que também é alto, e a ponta girando
como um peão, turbilhonar, criando desafios. Uma dança de povos. E uma dança de
acasalamento de polvos.
Mas só um astronauta poderia saber disso.
De lá de cima do céu da terra chove a Morte; aqui no fundo,
no alto, tudo o que lá em cima vive, morre para depois cair,
lentamente,
até o bojo do leito oceânico, sob a pressão de mil
atmosferas.
Uma vida contrária, seguindo o rumo e os caminhos dos rios,
os cabelos d’água que se unem todos na cabeça dessa Nossa Senhora dos mil
afogados, Mar.
Mas quem se acostumou, por milênios, a carregar esse peso no
ombro, hoje dança com desenvoltura e explosão equivalente a terremotos e
vulcões. Enquanto a superfície é tempestuosa, o mergulho interior é impassível,
lento e saturado, nebuloso e preenchido, perene.
Como um abraço apertado.
Mas um abraço pode ser terrível, pois aquilo que aconchega
também pode imobilizar.
Assim um polvo que abraça outra sorte, núpcia divina.
Assim um povo que esmaga outro, depois abraça.
O povo é o contrário do homem. E também o polvo. Toda
existência ali é passional: há razão no tato. Sentir a força das massas, de
água, de carne, de luzes, saber a história ancestral que liga a tudo e a todas,
as pequenas histórias no fundo do mar são tão caudalosas que arrepiam até os
cabelos da velha senhora, pensamentos tempestuosos geram chuvas moças, arredias,
raivosas e benevolentes, como o machado que desce do alto, e a fonte que, de
baixo, subiu, jorrou.
Visse isso um astronauta que falasse a língua dos povos, e dos
polvos, e dos anjos, teria também que ser habilidoso escafandrista, dado que sua
rival, seu par antagônico, o foco da lente da sua câmera fotográfica, apenas
graça ou brincadeira, é capaz de devorá-lo, e isso como uma forma de carinho,
de contato, de paixão.
para Suellen Siccotti