30.3.18

Inquietações filosóficas sobre a prática arquitetônica


Contribuições da filosofia à arquitetura na construção das civilizações: uma visão contemporânea até a morte do autor, mas que se pretende além. A prática da arquitetura desenvolve-se em três frentes: a idéia, o projeto e a construção. A idéia concebe, sob a forma de expressão, um artifício, texto e ou imagem, e esse fator compete em última análise à filosofia, que é a matriz das ciências humanas.

Arquitetura é o abrigo da cultura, e expressa todas as belezas e contradições que irradiam do espírito humano. Radiância que respinga no brilho do suor, forjada a ferro e fogo, trabalho contra o frio, o selvagem e o próprio ocaso do tempo, destino comum. Como disse um poeta, não basta ver o mar, melhor é vê-lo da janela.

Pois é o território que nos abriga e, além disso, provém recurso e se auto-regula, enquanto cada mutante espécie vive e se adapta, entre a manutenção e a inovação. Ora, se a terra dança com o sol no espaço sideral das galáxias, nós pequenos somos surfistas radicais nas placas tectônicas, entre mares de água e magma. Afinal, cada um vem ao mundo em missão, com a única finalidade de explorar, de reverberar, fator constante de transbordamento e abismo. Superação?

Para entender o mundo em que vivemos, deve-se entender o território, combinação entre o estado das técnicas e o estado da política – sintagma e paradigmas. Essa é uma das orientações do geógrafo Milton Santos, no livro Por uma outra globalização – do pensamento único à consciência universal. Ele diz: é fundamental viver a própria existência como algo de unitário e verdadeiro, mas também como um paradoxo: obedecer para subsistir e resistir para poder pensar o futuro. Então a existência é produtora de sua própria pedagogia.

Território: super-aparelho imagético e lingüístico – científico e orgânico, explorado por Vilém Flusser nos livros Filosofia da caixa preta – ensaios para uma futura filosofia da fotografia e O mundo codificado. Super-máquina de mosaicos cibernética, segundo algumas ciências, filosofias e ficções científicas, protótipo do universo, cuja arquitetura, e todo e qualquer artifício, é apenas reflexo, e não mais do que espectro de uma experiência comum a ambos os participantes.

Nesse sentido – o artifício como reflexo e espectro da vida, toda a obra humana existe unicamente sob o conceito de simulacro, onde as atividades da sociedade funcionam automaticamente. Esse tema é explorado por Jean Baudrillard no ensaio Á sombras das maiorias silenciosas – o fim do social e o surgimento das massas. Aquilo que é inédito e, portanto, não pode ser simulado, é unicamente um sentimento, uma vivência, uma experiência pessoal, algo possível somente a um super-homem; Assim falou Zaratustra, pela boca de Friedrich Nietzsche.

Ora, esse super-homem reside unicamente nesta terra, cheia de conflitos e problemas, um mundo opaco de imagens, entropia, de excessos e de ruído, conseqüência dos artifícios, mas também de possibilidades e soluções, de tranqüilidade musical – mágica sem segredos, sem seqüestros, sem seqüelas, sem sangrias: um mundo transparente, o objetivo original dos artifícios.

Que o diga o jogador-maestro José Servo, regendo magnânimo a sinfonia da vida, e morrendo afogado enquanto orientava seu discípulo, naquele lago de águas geladas daquela manhã ensolarada de inverno. Narrado por Herman Hesse no livro O jogo das contas de vidro, esse personagem alcançou, segundo seu própria concepção, um grau incomparável de produção artística e intelectual, à semelhança de Budas e outros seres iluminados. Porém esse grande discernimento e concentração – tal qual a obra do grande mestre budista Tien’Tai, por exemplo, não é algo assimilável ao leigo, e também algo pouco perceptível mesmo para aqueles que se interessam: a sabedoria como excelência do conhecimento. Sobretudo síntese, pois o conhecimento não é mais do que a experiência do artifício.

O potencial de atuação do super-homem, de transposições – múltiplas posições, assemelha-se ao nômade, que é o protagonista de História do futuro, obra do artista Milton Machado, e também aquele que percorre o rizoma de Gilles Deleuze e Félix Guattari, no livro Mil Platôs. Assemelha-se também à movimentação do jogo de xadrez: temporalização do espaço que orienta as diversas formas de apropriação do território e do espaço público, do espaço privado e suas reentrâncias. Através da espacialização do tempo, nossa vida e idéia de civilização ganha sentido, significado e valor.

Super-homem: mais do que arquiteto, participante e cidadão do mundo. Cidadão como aquele que batalha pela transformação ética de si próprio e da sociedade. Ética como o conjunto de princípios e valores que orienta a conduta – moral. A moral não como algo duro, engessado, mas mole, maleável e modelável: o espírito artístico. O artista como catalisador da sinergia entre as pessoas, os outros, a própria sociedade, a comunidade do cosmopolita, do viajante, daquele que passa. Mesmo com a demarcação exuberante e faraônica, a certeza do devir, do errar, à deriva, no barco de Jacques Derrida e dos situacionistas.

Paola Jacques Berenstein propõe uma Estética da ginga – a arquitetura das favelas através da obra de Hélio Oiticica. Nesse livro, tal estética divide-se em três fatores, ou três figuras conceituais: o fragmento, o labirinto e o rizoma. O fragmento abrange a relação do corpo com o seu entorno imediato, a arquitetura, e se apresenta tanto como diferença quanto repetição. É a batalha da novidade otimista contra o simulacro do eterno retorno, evolução versus criação.

O labirinto apresenta o desdobramento da arquitetura em meio urbano, enquanto fenomenologia, e encontra sua contraparte no seu projeto totalizante, pirâmide vista de cima. O rizoma por sua vez multiplica a situação do urbano para o espraiamento territorial, intrínseco aos limites do domínio e da exploração da natureza, totalidade de artifícios. Mas inverso a uma estruturação arborística, pois é, ao mesmo tempo, folha, tronco, raiz e floresta.

A um só tempo, se erigem o mundo das pirâmides – hoje arranha-céus, do racionalismo tecnocrático, de um projeto de sociedade, do embate ético aos conflitos morais. Porém, quando se percebe que a base da pirâmide é o próprio labirinto, e que a base sustenta o todo, sente-se a tentação de pegar a pirâmide com a mão e vira-la de cabeça para baixo, a fim de ver sua base não de cima – um ponto de vista ilusório e totalizante, mas de baixo, do lamaçal, pântano, mangue, onde nascem as flores mais raras. Mas isso não é possível, pois o mundo é muito maior do que nós mesmos.

Esse é o vagar do explorador: ele sabe, mesmo possuindo mapas e cartografias, que tudo não passa de conhecimentos ocos em folhas de papel. Mesmo a posição dos astros, que o astrolábio mede, nada significará, se ele não tiver um novo alvo a que se dirigir, e uma nova paisagem para apreciar. Modifica-se a cada momento a si próprio, evitando o desgaste desnecessário da redundância, do tédio, da solidão, de parar de se reinventar.

A morada é ao mesmo tempo plataforma de mutação do ambiente e transformação constante da nossa própria condição. A arquitetura, em sua totalidade espacial, é o próprio território, a configuração e o desenho de todos os elementos urbanos, das cidades, das estradas, dos sistemas rurais e industriais, das grandes obras de infra-estrutura. A arquitetura, e portanto a atuação do arquiteto, desenrola-se até os confins com as fronteiras da natureza: os portos de ilhas longínquas, os satélites espaciais, aviões partem de aeroportos e cruzam continentes, navios atravessam geleiras.

A produção do projeto arquitetônico ocorre em três fases sucessivas: análise e diagnóstico do contexto, partido e síntese das informações e tecnologias construtivas escolhidas. A primeira fase inclui todo o estudo do local de projeto, do lugar que o circunda e do meio ambiente em que se insere, bem como aos aspectos sociais, econômicos, político, histórico e cultural à gestão dos atores envolvidos.

O design do partido arquitetônico, a segunda fase, deve ser uma síntese entre programa – objetivo, e tema – subjetivo. Essa lapidação ocorre, por um lado, através de croquis, maquetes e estudos técnicos e, por outro, através de inspirações artísticas. Finalmente, na terceira fase, a documentação projetual torna factível a execução o planejamento e execução da obra. Existem ainda as fases pós-construtivas que devem ser levadas em consideração: a manutenção e o ciclo de vida da construção.

Assim, a questão essencial para o desenvolvimento de uma arquitetura contemporânea é: como sintetizar um objeto arquitetônico limpo, que seja a reciclagem de toda a informação?

(original escrito em meados de 2012)