Assisti hoje, 11 de Abril de
2017, o excepcional filme Era o Hotel Cambridge, em companhia de colegas da FAU
Mackenzie, no cinema do Shopping Frei Caneca, nas palavras da diretora Eliane
Caffé um docudrama beckettianamente costurado. Na sequência desenrolou-se uma
conversa não menos memorável, no próprio edifício do Cambridge, depois da
caravana de estudantes descer a Augusta e seguir pela Álvaro de Carvalho.
Entre o Shopping e o Hotel
tornado Moradia, uma colega que visitou a trabalho áreas de assentamento
precário conta o trauma que viveu ao ver um nenê lamber a mão depois de
lançá-la ao córrego tornado esgoto: alguns salgadinhos caíram no chão, era só
pegar! Ela carrega uma lembrança memorável, expectadora de algo mais preciso e cruel
do que a noção precedente de pobreza, como tomar o trem lotado quatro horas
todo dia; ao nenê, deseja-se e espera-se, tenham seus anticorpos e um mínimo de
nutrição conseguido superar o desafio que se colocou tão cedo em seu destino,
ainda que os desfechos de quem começa assim possam ser devidamente destrutivos,
como aconteceu com aquele ator de si mesmo, Pixote. Pessoas despedaçadas...
Vida que segue, adentramos o
Cambridge, o local da trama em si, e descobrimos que, diferentemente de um
passado recente, a experiência de revelação própria que o processo do filme
suscitou abriu as portas e janelas da ocupação para a rua. E o grande número de
pessoas presentes, por volta de oitenta, foi brindado com a presença marcante
de Carmen Silva, “protagonista da minha própria vida”, uma das lideranças da
Frente de Luta por Moradia – FLM, que interpreta a si própria e à qual segue
transcrito aqui um resumo do seu próprio relato.
Nordestina, mãe de oito filhos,
sofreu violência doméstica, morou na rua, no abrigo da prefeitura, e acabou
indo numa reunião do movimento de moradia depois de uma senhora insistir muito
em convidá-la. Pela convicção e graça despojada com que expõe sua certeza no
movimento, com aquela tez que a Maria Maria de Milton ilustra bem, fica claro
que temos ali uma mulher renascida, que já foi também uma pessoa despedaçada, mas
que foi devolvida à sociedade como cidadã que clama pelos seus direitos, nada
mais que isso. Cidadania esta que, em última análise, liga todas as pessoas,
numa série ininterrupta de reações em cadeia; o individualismo, a isolação, é a
morte, mas viver e estar junto, conviver e reconhecer afetos em comum, é o que
faz viver.
São Paulo tem 2 milhões de metros
quadrados de imóveis sem uso, e um grande fluxo de pessoas que não tem onde
morar, como um rio caudaloso e maltratado, um animal acuado e um monte de concreto
abandonado. Assim ficou o Cambridge anos antes de 2017, e assim foi com a primeira
ocupação de Carmen, o Casarão Santos Dumont nos Campos Elíseos, em 1997. E
aderiu ao modo ocupação depois de perceber que a cultura do mutirão, iniciada
na Fazenda da Juta no começo da década de 90, estava custando muito caro para os
principais interessados, sendo que muitas pessoas morreram sem poder usufruir o
mínimo da casa que construíram. E o centro, nessa época, despovoado, aos
caprichos daquela nada especulativa e caprichosa espera do mercado: quem faz
tocaia fica acordado e apenas aguarda a hora de liquidar a peleja. Repovoar o
centro, hora pois – a Paulista tão pujante e as favela tão distante!
A moradia não é uma caixa.
Arquitetura é vida, e não o concreto, a caixa quadrada, ainda que para
retângulos cada vez menores de CDHU ou PMCMV as Casas Bahia e Lojas Marabrás
sempre encontrem soluções ousadas, criativas, inusitadas, e sempre lucrativas.
Assim como o teatro não é para os grandes salões, mas para o povo. Assim como devem
ruir os parâmetros que encrudescem a Universidade, alijando-a de sua própria
destinação: a assessoria técnica a quem precisa, que sofre real necessidade, o
projeto embaixo do braço. E ninguém quer nada de graça, queremos comprar! E não
precisamos ser proprietários, desde que haja garantia do direito de moradia,
assim como reivindicaram militantes da Plataforma de Afetados pela Hipoteca –
PAH, durante a exibição do filme no festival de cinema de San Cristóbal, na
Espanha. Nessa ocasião Carmen procurou, mas na Espanha por onde andou não
encontrou nenhuma rua com o nome Cristovão Colombo. Aqui os nomes dos
exploradores são muitos, não cansam de nos lembrar, por que será?
A moradia é essa arquitetura
urbana que tem, como grande princípio, a assessoria técnica, pois temos que ser
compactos, dado que somos muitos e os recursos poucos. Plano Diretor Estratégico
é uma capacitação que o governo tem com suas cidadãs e cidadãos. Tudo o que o
movimento de moradia quer é pertencer ao Estado, e não fazer parte deste à
contragosto. Combater a lei com a lei, pois mesmo a lei, nas rubricas, se
prostitui: se até mesmo o prefeito vai ao exterior vender os números dos nossos
Bilhetes de Transporte, leia-se “Títulos de Eleitor”, há de se encontrar outras
formas de luta. Como arma contra juízes, usar mixiricas quebrando as cascas.
Derrubar os muros, colocar cortinas brancas, adequar o favelão à cidade – um mínimo
de infraestruturas – e não sobrepor-se a esta.
Aqui não é acampamento da Cisjordânia;
aqui é o Shopping Rua! Tem estrangeiros das mais diversas culturas, mulheres,
crianças, toda sorte de gênero, e cabe a preocupação em tentar compreender cada
um destes. A comunicação é tudo. Não deixe a arte morrer, pois só a arte é
capaz de se entremear por todas as camadas. A essência de vivermos juntos, e
tem várias Carmens por ai...