Mar das dunas e oásis do deserto, o corpo dela. Paredes caiadas do
cinturão de casas com pergolados cobertos de parreira. Palmeiras e cachos de
tâmaras. O intenso comércio e agitação da cidade imperial.
Ele entrou pela janela de marfim branco daquela torre moura, com cume
apontado e arredondando gorda conforme chegava ao tronco regular, a dois terços
de altura, para depois afinar um pouco, como a cintura que vai do ventre às
ancas, Mashrabiya. O corpo levemente declinado, as mãos segurando nas bordas
unhas e patas de gato preto o gesto lento e confiante, da escuridão se lança e
os olhos brilham infinitas partículas de luz, passando na fresta trançada de um
lugar fresco, Muxarabi.
Entrando pelos poros como de um palácio a pele, burlando toda a severa
vigilância, dando esquivas e voltas, desaparecendo e a surgir tornando, como
testemunha oculta, do alto da torre um pássaro observa cúmplice o gato preto
andando no telhado.
Entrou junto com as borboletas amarelas de um fim de tarde, pela fresta
que bebe a luz solar, logo mais vai se derramar na lua. Mas não agora, pois
observa tateando com os olhos a rainha que dorme esguia na macia cama forrada
de nenúfar, paxá de harém, no centro de um aposento de pedra terrosa polida,
cor de bronze mármore, algo tão macio convertendo-se em entorno sólido, nos
quatro vértices trepidam tochas de fogo ouro.
O ladrão lembrou-se então da sua própria casa de outrora, aquela grande
tenda, o formato de oca, que sua família erigia e desmontava de tempos em
tempos. Épocas de permanecer, momentos de partir. Mas isso foi uma de mil e
outras histórias. No que ele se concentra agora é na face vulnerável da vítima
que dorme entregue, rainha em seu esplendor. É que para os sonhos e a morte
somos todos iguais, realeza e plebe. E o ladrão não se furta ao receio da
rainha acordar, de tentar seduzi-lo, ou mesmo com seu cetro ordenar matá-lo.
Ele não tem um trabalho a cumprir, nem uma missão a realizar. Mas tem fome de
sonhos. Gosta de devorá-los, sorvendo-os até dissolverem e virarem mistério.
Carece de sentir deslocar-se no seu corpo os sonhos líquidos da vida de outrem.
Tem gosto pela fome, o gato preto que sente a respiração quente e doce da
rainha enquanto a observa, nariz a nariz, e ama expelir.
A rainha acordou pouco depois como num susto, suada e algo ofegante, toda
molhada no meio das pernas. O incenso ainda a queimar, inebriando o ar com seu
aroma cítrico na noite que raiava.